Marcelo Rebelo de Sousa está a chegar a Angola com toda a pompa e circunstância. É um regresso às origens. Mais um. Um de muitos. O pai do “Ti Celito” só foi governador de Moçambique em 1968 mas ele já antes, jovem português de 17 anos, tinha visitado toda a colónia de Angola em 1966. A Terra onde esse jovem que vai agora comemorar o seu 70º aniversário é afinal também a terra do seu avô, António (dono dos armazéns Catonho Tonho em Luanda) e da sua avó, de origem negra, Joaquina.
Em 30 de Março de 2006, a revista portuguesa Sábado publicou um trabalho de Dulce Garcia intitulado “As aventuras da família Rebelo de Sousa” que, com a devida vénia, a seguir de transcreve.
«O confronto político entrou cedo na vida de Marcelo Nuno Rebelo de Sousa. Aos 6 anos foi corrido do camarote presidencial do Centro Hípico da Gandarinha, em Cascais, naquele que seria o primeiro acto oficial do pai. Nem a imagem da criança, de calças curtas e casaco, impediu o então Presidente da República, Craveiro Lopes, de se dirigir rispidamente a Baltazar Rebelo de Sousa.
– Quem é o senhor?
– O novo subsecretário de Estado da Educação, que acaba de tomar posse.
– E o menino?
– É meu filho.
– Filho de subsecretário não é subsecretário. O menino faz o favor de sair.
Começava aqui a relação do filho mais velho dos Rebelo de Sousa com o poder. Uma relação que se estendeu aos outros dois irmãos (na foto, em baixo, com Pedro e António, junto ao pai) e que torna impossível contar a história da família sem fazer o retrato político do País, desde o Estado Novo até à democracia. A partir do momento em que se alistou na Mocidade Portuguesa, em Abril de 1936, até ao dia em que partiu para o exílio, em Junho de 1974, Baltazar dedicou quase quatro décadas da sua vida à política. E quando caiu, com o regime, deixou dois filhos a trabalhar na construção da democracia. O terceiro havia de herdar outra vocação paterna: o sonho da lusofonia. Este último, Pedro, foi, durante anos, a companhia preferida de Oliveira Salazar.
A história começou a 8 de Dezembro de 1960, dia de Nossa Senhora, quando a criança foi levar um ramo de flores ao Presidente do Conselho, numa homenagem da Mocidade Portuguesa. Os discursos deram-lhe sono e adormeceu na cadeira de Salazar. Divertido, o ditador acordou-o e perguntou-lhe o que estava ali a fazer. Pedro, estremunhado, disse que não sabia, limitando-se a estender as flores. Salazar sorriu e murmurou algo como: “Deve ser o único, aqui, que diz a verdade…”.
Pedro, Salazar e as verdades
Semanas mais tarde, Pedro recebia um telefonema da governanta de Salazar, convidando-o para acompanhar o patrão num passeio. A amizade durou até aos 14 anos do rapaz, a quem o chefe de Estado chamava Zé Povinho. Todos os domingos, às 10h30, Salazar ia buscá-lo no carro oficial e daí seguiam até S. João do Estoril. O Presidente do Conselho perguntava-lhe pelos estudos e pedia-lhe que lhe contasse anedotas. No Natal, oferecia-lhe discursos autografados em troca de castanhas caramelizadas. Iam quase sempre sentados no banco de trás, com as cortinas corridas. Mas às vezes o governante afastava-as para acenar às pessoas. “Sempre com uma enorme timidez”, recorda Pedro Rebelo de Sousa. E frisa a lucidez da figura. “Lembro-me de passarmos debaixo da ponte Salazar, hoje 25 de Abril, e ele dizer: ‘Esta ponte vai ter o meu nome mas isto não dura muito.’”
Quando chegava a casa, o rapaz era sujeito aos interrogatórios do irmão mais velho. Um dia, Marcelo encomendou-lhe uma pergunta: se a pessoa mais importante se senta à direita, porque é que Salazar ia à esquerda no carro? A resposta do político deixou Pedro aterrado: “São os homens da segurança que mandam. Se vier um tiro, atinge-te a ti.”
Maria das Neves Duarte (em baixo com os filhos) costumava ilustrar as diferenças dos três filhos com uma história deliciosa. Dava 20 escudos a cada um para fazerem o que quisessem: Marcelo comprava livros, António guardava o dinheiro e Pedro ia com os amigos à pastelaria Tentadora e gastava tudo em pastéis de nata.
Talvez a mania dos livros seja uma herança genética. Em 1875, Manuel Joaquim Rebelo de Sousa, bisavô de Marcelo, gastou umas centenas de réis para imprimir o livro Conselhos de um Pai Extremoso, espécie de bíblia familiar para os dois filhos que se preparavam para emigrar para o Brasil.
Para o Brasil e depois para Angola
O lavrador e comerciante de Cabeceiras de Basto foi apanhado pela crise de 1870 e viu o negócio tremido. Com seis filhos para criar, não teve outro remédio senão separar-se de dois: Baltazar Joaquim e António Joaquim, que depois do Brasil partiram para Angola.
Baltazar, o mais velho, não resistiu à malária e ao paludismo e morreu cedo. António sobreviveu e pôs-se a caminho do interior, onde acabaria a trocar bugigangas por café. Ao fim de 30 anos, fez fortuna e instalou-se em Luanda, onde abriu uma casa emblemática: o Catonho Tonho (expressão africana para “Ir à Loja do António”).
Este homem tenaz (que enviuvou aos 50 anos e ficou com cinco herdeiros) casaria em segundas núpcias com Joaquina Leite da Silva (na foto, em baixo, nos anos 70), uma mulher 35 anos mais nova, natural de Celorico de Basto mas com sangue africano. Ironia das ironias, o primeiro herdeiro do casal , que dedicou a vida ao regime, chegou ao mundo um mês após a fundação do PCP: Baltazar Leite Rebelo de Sousa nasceu a 16 de Abril de 1921.
Órfão de pai desde os 6 anos, fez o liceu no Pedro Nunes, onde foi colega de Adriano Moreira. Sem ser um miúdo popular, organizava festas, jogava futebol e ia às matinés do Tivoli. Acabou inscrito na Associação dos Escuteiros de Portugal, onde tropeçou num amigo inseparável: Jorge Jardim, pai das irmãs Jardim e um dos homens mais influentes de Moçambique nos anos 60. Quando a Acção Escolar Vanguarda se converteu em Mocidade Portuguesa (MP), em Abril de 1936, Baltazar foi dos primeiros voluntários, ao lado do economista António Ricciardi e do historiador José Hermano Saraiva. A adesão à MP ditou-lhe o caminho político: o da ditadura militar, na defesa de ideias nacionalistas e republicanas.
Entre 1940 e 1944, Baltazar frequentou a Faculdade de Medicina de Lisboa sem entusiasmo. Queria seguir Direito mas o padrasto (o comerciante Joaquim Tenroso) contrariou-lhe a vocação. Foi por essa altura também que se apaixonou por Maria das Neves Fernandes Duarte, aluna interna do Colégio de Odivelas, órfã de pai e de mãe, que veio para Lisboa à guarda de um tio padre, Monsenhor António Fernandes Duarte. Como em todas as histórias de amor, não tardaram a chegar contrariedades – as famílias opunham-se ao namoro. Mas a 5 de Abril de 1947 foi deles a última palavra: casaram-se na igreja da Pena, em Lisboa. Como padrinhos, Marcello Caetano e a mulher, Teresa; e José Augusto Soares Franco (da família que detém a produtora de vinhos José Maria da Fonseca) e a mulher, Carlota. Não houve um único familiar presente na cerimónia.
O primeiro filho nasceu no número 102 da Rua de São Bernardo (à Estrela), a 12 de Dezembro de 1948. Foi Marcelo por causa do outro Marcello, Caetano (de quem Baltazar fora ajudante na Mocidade), que à última hora declinou o convite para padrinho, alegando ser mais velho do que o pai da criança e incapaz de o substituir se fosse preciso. A 21 de Maio de 1952 nasceu António Jorge. Herdou o nome de Monsenhor António Fernandes Duarte, entretanto reconciliado com a sobrinha.
Quando Baltazar entrou para o governo, a 21 de Julho de 1955, como subsecretário de Estado da Educação, passaram a ser seis, em vez de quatro: nasceu Pedro, a 29 de Abril, e arranjaram uma empregada, que levava os meninos à escola, ou melhor, ao Lar da Criança, um colégio moderno que abriu numa sexta-feira 13, em Outubro de 1950, com 13 alunos – entre eles Ruben de Carvalho (do PCP), Nuno Fernandes Thomaz (do CDS-PP), João Caraça (filho do matemático Bento de Jesus Caraça) e o próprio Marcelo.
“Era uma criança mimada, mas sem excessos. Calmo, amigo dos outros. Não me lembro de o ver fazer uma birra”, garante Berta Ávila de Melo (Bertinha para os alunos), fundadora da escola, hoje com 90 anos [na foto, em baixo, tirada em 2006]. Os olhos brilham-lhe quando fala dos Rebelo de Sousa. “O Marcelo era óptimo aluno. Já tinha o dom da palavra.”
Sempre que se portava bem, ganhava uma pastilha de açúcar. Também se perdia pelo bacalhau amarelo (à Brás) e por hambúrgueres com esparguete. A certa altura, deu-lhe para ser importante. Berta não esquece o raspanete que lhe deu quando o viu a dar ordens. “O teu pai foi para o governo mas tu não és ministro. Não quer dizer que não venhas a ser, mas agora és igual aos outros.” António, o filho do meio, era mais difícil. “Tinha mais mimo porque era asmático”. Já Pedro continua íntimo da casa. “Não falta a uma festa da escola.”
Nem nos períodos mais conturbados Baltazar descurou a família. Jantava quase sempre com as crianças e ao serão davam uso à caixa enorme que o governo lhes mandara para casa: uma televisão para assistirem às primeiras emissões regulares da RTP, que foram para o ar a 7 de Março de 1957. Também receberam uma telefonia Siemens e dois telefones, um normal e outro branco, para as chamadas de Estado.
Ao som de Shegundo Galarza
Quando acompanhava o marido nos programas oficiais, Maria das Neves socorria-se da sua imaginação e bom gosto para reciclar toilettes. O ordenado de Baltazar não chegava para os modelos da Candidinha, a loja da moda, ou para os chapéus da Gardénia. Mesmo assim, tinham vida social. Marcelo descreve-a, na fotobiografia dedicada ao pai. “Uma ida por mês ao Mónaco ou à Choupana [restaurantes da linha de Cascais], onde o regime envelheceria ao som de Shegundo Galarza. E quando o rei faz anos, uma ida ao Parque Mayer.”
Viagens ao estrangeiro eram impensáveis. Mas nada disto tirava o sono a Baltazar, que continuava fiel ao estilo de vida espartano. “Até o meu pai ir para o governo, vivemos com algumas dificuldades. Mudávamos as solas aos sapatos, virávamos os colarinhos às camisas e púnhamos remendos nos cotovelos”, conta Marcelo à SÁBADO. Um dos seus melhores amigos, Carlos Pires, entretanto falecido, nascera em berço de ouro. “Tinha uma casa com jardim e muitos carros.” Foi lá que o professor jogou pela primeira vez Monopólio. No Verão de 1959, quando estava de cama com gripe, pediu ao pai que lhe comprasse um. Baltazar não se pôde dar a esse luxo: o jogo custava quase um décimo do seu ordenado. Marcelo ficou triste mas nunca se sentiu inferior. “Percebia que os meus pais faziam outras coisas.” A mãe acompanhava-os nos estudos e ensinava-os a pensar. “Possuía uma inteligência muito masculina. Foi ela que nos falou de sexo. Tinha jeito para as tarefas domésticas mas discutia política com os homens”, recorda. O irmão mais novo confirma o clima erudito. “Os meus pais recebiam o L’ Express, o Nouvel Observateur e o Le Point. Aos 7 anos ouvia e participava em discussões sobre a independência da Argélia.”
Em Maio de 1961 Salazar remodelou o governo e Baltazar (marcelista) saiu de cena, como o próprio Marcello Caetano. O jejum político teve um lado bom. No Verão desse ano, Jorge de Mello, um dos donos do grupo CUF, convidou-o para administrador da seguradora Império. A extravagância da família foi alugar o segundo andar do prédio e ligá-lo ao primeiro. Manuel Botto, vizinho e amigo (tratava os Rebelo de Sousa por pais) diz que mantiveram a modéstia. “O pai Baltazar nunca deixou de ir à mercearia. E falava com toda a gente no bairro.”
Marcelo parece ter herdado esse despojamento. “Sou desprendido, mas chateiam-me um bocadinho os ricos. No Pedro Nunes, era colega do filho do Jorge de Mello, patrão do meu pai, e pegámo-nos muitas vezes. Não sei se não era por causa disso…” Nessa altura, almoçavam quase todos os dias juntos. Pedro recorda: “O meu pai dava créditos por notas. Quem tinha ‘Bom’ ganhava um soldadinho, ‘Bom Mais’ dava direito a dois e ‘Muito Bom’ a três. Fizemos um exército.” Tinham aulas particulares com professoras de línguas. E não é por acaso que, no ano em que coincidiram no Liceu Pedro Nunes, ficaram os três no quadro de honra. À medida que foram crescendo, os prémios evoluíram. “No início do quarto ano, o Marcelo propôs-se tirar 18 valores em troca de uma mota. E conseguiu.” Ganhou uma Pachancho, produzida em Braga.
O bom humor de Baltazar estava de volta. Aos fins-de-semana levava a família a passear no seu BMW em segunda mão e cantava músicas brasileiras. A seguir vieram as férias pela Europa, de carro, com casais amigos. Marcelo tinha um estranho hábito. “Trazia as manteigas dos restaurantes no bolso. Em Paris, saiu do carro com o casaco cheio de nódoas”, conta António. No liceu, Marcelo dava nas vistas. Namoradeiro, andou aos beijinhos com a actriz Ana Zanatti, mas o primeiro amor chamava-se Isabel Alvez. Era morena. “Sempre tive tendência para morenas, embora com afloramentos…” Mais loura, bonita, era Teresa Beleza, irmã da ex-ministra Leonor. A paixão durou ano e meio. Criativo, Marcelo esmerava-se. “Fiz loucuras. Preparava jantares e era imaginativo nos presentes.”
A 17 de Junho de 1968, depois de mais uma remodelação política, Baltazar chegou ao cargo da sua vida: governador-geral de Moçambique (no país, com Marcelo, na foto em baixo). Em dois anos fez coisas impensáveis. “Abriu as portas do palácio da Ponta Vermelha aos negros. Recebeu gente como o pintor Malangatana ou o poeta José Craveirinha, que tinha estado preso pela PIDE em condições terríveis”, conta o jornalista Rui Cartaxana, então director da revista O Tempo em Moçambique e opositor do regime.
Baltazar queria integrar-se nas classes mais baixas e dar um sinal de abertura. Autorizou a circulação de livros proibidos, tirou intelectuais da prisão e preparou um plano de viagens por toda a província, para ir ao encontro de civis e militares. Almeida Santos, na altura chefe da oposição democrática, e seu rival, reconhece-lhe a determinação. “Éramos adversários mas tínhamos uma admiração mútua. Tive um grande acidente de carro e ele foi ver-me ao hospital. Foi um escândalo.” O casal não encaixava nos cânones da altura. “A direita, conservadora e patriótica, achava que eles eram malucos. A esquerda pensava que estavam ali a fazer um frete”, diz Cartaxana.
Marcelo ficou em Lisboa. Pedro e António não: estudavam no Liceu Salazar e viviam num palácio com 40 empregados. Mas nem assim o pai amolecia. “Tínhamos piscina, campo de ténis, mas não podíamos convidar amigos”, diz António. Iam a festas a clubes e ao hotel Polana, onde dançavam com as irmãs Jonet e as Jardim [Xenica e Patucha]. O filho mais novo acompanhava a mãe nas obras sociais. “Organizámos aulas de português para os empregados do palácio, fizemos concursos de reabilitação de palhotas. E íamos visitar muitas obra de freiras.” Cartaxana confirma: “Maria das Neves dedicou-se muito a ajudar os desfavorecidos.” O seu nome ficou numa das maiores creches de Moçambique, no Caniço. Mesmo após a independência, Samora Machel quis mantê-lo. Também por isso o casal teve uma multidão de negros a despedir-se no aeroporto.
O Portugal a que Baltazar regressou para ministro das Corporações e Previdência Social, da Assistência e depois da Emigração tinha mudado. E muito. A intriga política fervilhava e a classe média estava farta de sacrifícios. Em casa, as cores políticas começavam a distingui-los. Prestes a iniciar o quinto ano de Direito, Marcelo formou um núcleo de reflexão cristã, o Grupo da Luz, com António Guterres. O irmão do meio, que estudava no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF), era o mais radical. “Para chocar o meu pai, usávamos gravata preta nos actos eleitorais”, conta António.
O amor estava no ar
No Verão de 70, Marcelo conheceu a mulher, Ana Cristina Motta Veiga, filha de outro ministro de Salazar, António Motta Veiga. O namoro começou de forma pouco convencional: “Ela entrou numa festa de braço dado com o antigo namorado e saiu minha namorada.” A futura educadora de infância afastava-se do seu padrão feminino. “Talvez tenha sido uma reacção de cansaço às mulheres que conheci, politicamente activas e intelectuais. Quis complementaridade”.
Também nessa altura, António conheceu Maria Henriqueta Trigueiros de Aragão Pinto de Mesquita, herdeira dos fundadores da farinha Branca de Neve. Foi Marcelo que arranjou o encontro. “Convenceu-me a ir com ele, a namorada e a Mariazinha à Choupana.” Não se arrependeu. A 7 de Fevereiro de 1971 pediu-lhe namoro em frente aos pastéis de Belém.” Casaram no Verão Quente de 1975. Pedro desenrascou-se sozinho. Tinha 16 anos quando viu Ana Margarida Lobato de Faria Sacchetti, “Bi”, na praia do Estoril. Foi amor à primeira vista. “Além de bonita, ela lia e recitava de cor Eugénio de Andrade e David Mourão-Ferreira.”
Reencontraram-se para tomar chá. “Disse-lhe que tínhamos de começar a namorar. Levei-a a casa e no dia seguinte mandei-lhe cravos.” Durante semanas, insistiu nas flores. Até que a mãe da cortejada, a escritora Rosa Lobato de Faria, interveio. “Telefonou-me a dizer que não tinha jarras para tantos cravos e a pedir-me que parasse.”
Na madrugada de 25 de Abril de 1974, Marcelo Rebelo de Sousa ia a sair do jornal onde trabalhava, o Expresso, quando soube do golpe de Estado. À mesma hora, o ministro do Ultramar, Baltazar Rebelo de Sousa, foi avisado pelo major Silva Pais, director da PIDE, de que o Presidente do Conselho ia para o quartel do Carmo. Era quase meio-dia quando conseguiu falar com Marcello Caetano e passar-lhe alguma informação que o outro Marcelo ia dando à mãe. À hora do jantar, Baltazar tentou falar com Américo Thomaz, mas o secretário-geral da Presidência mandou-o entender-se com o primeiro-ministro. Percebeu que a sua vida política tinha acabado.
A 30 de Junho, ele e a mulher embarcaram para o Brasil com menos de 20 contos. Para trás ficavam os três filhos e um neto. Marcelo já era pai. Nuno nasceu de cesariana em Agosto de 73, no Hospital Particular. O professor assistiu ao parto. A sua modernice começara na gravidez. “Ia com a minha mulher fazer ginástica respiratória.”
A revolução ameaçou a harmonia conjugal. “Foi aí que deixei de dormir. O Expresso fazia-se às tantas da manhã. De dia tinha aulas, à tarde havia reuniões partidárias e à noite ia fazer comícios até de madrugada.” A mulher chegou a trabalhar de borla no partido para estar mais perto dele, mas não chegou. “Ela era do antigo regime e tudo isto lhe fazia confusão – o empenhamento político, os sustos. Houve períodos em que ela e o meu filho não podiam dormir duas noites no mesmo sítio.” A época das perseguições revolucionárias foi complicada.
O dinheiro faltava (chegaram a fazer uma minicooperativa e a vender fruta e vinho a amigos de Cascais) e os estilos eram diferentes. O casamento acabou em 1981, quatro anos depois de nascer Sofia.
PSD, António e Sousa Franco
Entretanto, António, fundador e primeiro presidente da Juventude Social Democrata (JSD) e deputado pelo PSD, entrou em rota de colisão com Sá Carneiro, por defender um bloco central com o PS. Saiu do Parlamento com Sousa Franco em 1979. “Fiquei numa situação difícil, apesar de me terem acusado de oportunismo.” Entrou para o PS em 1982 e um ano depois voltava a S. Bento. Mas não ficou muito tempo. Voltou-se então para a actividade empresarial. Primeiro com André Jordan, na operação de recompra da Quinta do Lago, depois com António Gonçalves da Silva, na empresa de estudos de mercado Euroexpansão. A seguir veio um negócio que correu mal – o projecto de Vale Navio, um dos primeiros empreendimentos de time-sharing do Algarve, que deu origem a vários processos.
Baltazar e Maria das Neves recompunham a vida em São Paulo. Foi um pupilo da Mocidade Portuguesa, José Pinto da Motta, que deu emprego ao político, como administrador numa fábrica de pneus. Durante anos, Baltazar acumulou estas funções com aulas na Faculdade de Direito de Pinhel. Duas vezes por semana, à noite, fazia 360 quilómetros para ir ensinar.
A 12 de Junho de 1982 Marcelo recebeu um telegrama da professora Bertinha a felicitá-lo pelo novo cargo: ministro dos Assuntos Parlamentares. Nesse dia, o cirurgião Eduardo Barroso recordou a infância. “Aos 10 anos disse a um primo meu que o Marcelo era a pessoa mais inteligente do mundo e que havia de ser Presidente da República ou primeiro-ministro.” As funções de Estado apanharam o professor num novo papel: pai divorciado. “O Nuno reagiu bem, mas a Sofia era mais pequena e levou em cheio com o divórcio. Durante muito tempo, só comeu ovo cozido com esparguete.” Nas férias de Verão de 82, levou-os para o Algarve. Pelo caminho, falou-lhes de sexo. “Foram umas férias loucas. Faltou-me dinheiro, esqueci-me dos cartões, a Sofia teve uma angina.”
“O Nuno reagiu bem, mas a Sofia era mais pequena e levou em cheio com o divórcio. Durante muito tempo, só comeu ovo cozido com esparguete”, conta Marcelo Rebelo de Sousa.
Em 1989 defrontou Jorge Sampaio nas eleições para a Câmara de Lisboa. Em campanha, guiou um táxi, recolheu lixo e nadou no Tejo. Perdeu as eleições num debate televisivo. “Foi esmagado porque se armou em politicamente correcto”, diz Barroso.
Aos 74 anos, Baltazar regressou de vez a Portugal. Nessa altura António mudou-se para as Torres do Restelo com a mulher e os três filhos. Miguel, hoje com 29 anos, economista, a trabalhar na EDP; Luís, 27 anos, também economista, na Price Waterhouse Coopers; e Mafalda, de 23 anos, que está a acabar Direito.
Pedro Rebelo de Sousa ganhou fama como advogado no estrangeiro, primeiro no Brasil, depois em Nova Iorque. Foi fazer 30 anos a Manhattan, onde ocupou a vice-presidência do Citibank. Vizinho de Liza Minelli e Anthony Quinn, trocou os luxos por Portugal, onde veio privatizar o Banco Fonsecas & Burnay, em 1984. Hoje é sócio da Simmons & Simmons Rebelo de Sousa e pai de Afonso, 23 anos, designer, e de Mariana, 27, formada em Direito.
Só o topo era o limite
Marcelo acumulou todos os cargos, até chegar à liderança do PSD, em 1996. Sentiu, então, na pele, o peso da intriga. E pagou bem cara a factura. “Perdi brutalidades. Em 1995 ganhei uns 120 mil contos, o que dava uma média de 10 mil por mês. Como presidente do PSD passei a receber menos de mil.”
Nos bastidores, engoliu uma zanga antiga com Paulo Portas em nome de uma nova AD. O sonho ficou pelo caminho. Em ruptura com o então líder do PP, demitiu-se e acusou-o de traidor. Dois dias depois, ao ler a crónica do então director do Expresso, José António Saraiva (com quem mantinha relações próximas há anos) ficou possesso. O próprio Saraiva recorda: “Tendo-se ele demitido do PSD acusando Paulo Portas de falta de carácter, eu dizer que eles eram iguais foi terrível.” À distância dos anos, o arquitecto corrige: “Enquanto o Marcelo faz tropelias mas tem princípios morais, Portas é um lobo que vai até onde for preciso e mata. Nisso são diferentes, com vantagem para Marcelo.”
“O que tinha a dar já lhes dei [aos filhos]: educação, cultura, viagens. Não vai haver herança (…) Não tenho sentido de propriedade. Vivo numa casa alugada, passo férias num hotel e até o carro é aluguer de longa duração”, diz Marcelo Rebelo de Sousa.
As tropelias de que fala Saraiva fazem parte do retrato psicológico traçado pelos inimigos. “É cerebral e destruidor, até com ele. Se chegasse a Presidente da República, fazia um golpe de Estado contra si próprio”, diz um antigo dirigente do PSD. Os amigos pintam outro homem. “É generoso, quase sempre de forma secreta. Ajuda pessoas que ninguém imagina”, garante Leonor Beleza.
Marcelo não perdeu a veia de casamenteiro. Em 1996 foi passar a Páscoa com os filhos ao Algarve e arranjou namorada para Nuno: Rita Megre de Sousa Coutinho, filha de uma das primeiras gestoras portuguesas, Isabel Antas Megre, e de um descendente de D. Francisco de Sousa Coutinho, conde do Funchal. “Fui ter com ela e disse-lhe que caso tivesse namoro devia acabar para começar com o meu filho.” Nessa noite, Marcelo jantou em casa dos pais dela, velhos amigos. “Passei o tempo a vender o Nuno. Quando os mais novos chegaram de uma ida a Vilamoura, avisei: ‘Está combinado. Casam daqui a três anos e meio.’” Casaram três anos, cinco meses e um dia depois desta conversa.
Formado em Economia na Católica e a trabalhar na Portugal Telecom, Nuno tem descendência – Francisco, de 3 anos, e Maria Teresa, que completa 1 em Maio.
A filha Sofia, animadora educativa em bairros de lata, continua solteira. “Tem um grande temor de se comprometer.”
Nenhum deles está à espera de enriquecer com o pai. “O que tinha a dar já lhes dei: educação, cultura, viagens. Não vai haver herança.” Percebe-se. “Não tenho sentido de propriedade. Vivo numa casa alugada, passo férias num hotel e até o carro [um BMW] é aluguer de longa duração.” Apego, só aos livros. Teve uma arquivista em casa para tratar de 33 mil exemplares, até mandar a biblioteca para Celorico de Basto. A sua nova mania é o vinho tinto. “Fiz uma garrafeira. Quando janto em casa de amigos, levo as minhas garrafas.” Ao almoço prefere água e Trinaranjus de ananás. Na comida, é frugal. “Janto sempre mozarela com tomate para experimentar azeites e vinagres balsâmicos.”
Apreciador de música, apaixonado por ópera, cultiva hábitos que já são mitos: como nadar no Guincho, dormir cinco horas por noite e fazer telefonemas às três da manhã.
É viciado em gelados Santini, devora jornais e televisão e adora fazer rir. Católico, com as missas sempre em dia, namora com Rita Amaral Cabral (na foto, em baixo), cunhada do patrão da TVI, Miguel Pais do Amaral, com quem se zangou, mas nunca pensou voltar a casar.
Dono de “uma inteligência felina”, como diz José António Saraiva, é um homem só. “Vive em permanente tensão. E no meio desta algazarra toda, é um solitário”, confirma Manuel Botto.
Inesperado num país onde se espera sempre o pior, já deixou de fazer previsões políticas, mas não se dá por vencido. Aos 6 anos foi enxotado por um Presidente da República e não baixou a cabeça. Isto quer dizer alguma coisa.»